quinta-feira, 1 de março de 2012

0

Expectativas sobre o novo emprego numa pequena cidade quente.



Postado por Dr. Carlos M. Silva, às 23:36

Calor do inferno! Se tivessem me dito que essa cidade é tão quente eu teria pensado duas vezes antes de aceitar o emprego, contudo eu o fiz por Elizabete, ela insistiu muito, dizendo que se continuássemos onde estávamos ela iria enlouquecer, chegou a falar até em terminarmos tudo. Não sou de ceder a chantagens emocionais mas o fato é que eu realmente a amo muito, mais do que eu consigo descrever, e ela tem um sério problema com cidades grandes, multidões, aglomeração e tumulto. Cresceu no campo, onde a noite os únicos barulhos que se escuta são dos insetos noturnos, da chuva e onde o ar que se respira não te mata aos poucos. Planejamos nos casar daqui um ano mais ou menos e ela quer pra nós uma vida tranqüila, num lugar sossegado onde possamos criar nossos filhos, vendo-os crescer saudáveis e seguindo os ensinamentos de Deus e Jesus Cristo, nos quais ela acredita tanto. Não sou chegado a religiões ou igrejas, tenho minha própria fé, que é no ser humano e em sua capacidade de mudança, embora desde que o mundo é mundo ele não a vem usando de forma produtiva. Já ela, não perde nunca as missas de domingo de manhã, está sempre lá. Bem, ela se sente bem assim, se sente em paz. E se ela estiver em paz, seja onde for e acreditando no que quer acreditar, eu estou feliz.
Começo no hospital na segunda-feira e confesso, não vou mentir, estou empolgado. Cansei de meus longos plantões de duas, três noites seguidas no hospital da capital, suturando acidentados, aturando bêbados e muitas vezes vendo o pior lado do ser humano. É incrível o que as pessoas podem fazer umas com as outras, podem fazer de ruim, quando são tomadas pelos seus instintos mais primitivos. Por um bom tempo eu pensei em cursar psicologia, sempre achei que tenho tino pra isso, mas descobri que medicina, quando não te torna uma pessoa indiferente ao sofrimento alheio, como acontece em muitos casos, te mostra a verdadeira natureza humana, o quanto podemos ser fortes a ponto de vencer a morte anunciada, mas também o quanto não somos nada, somos meros receptáculos de carne, frágeis, cujo um bisturi pode abrir facilmente, como faca na manteiga. Acho que com o passar do tempo vou me acostumar com a cidade, com os poucos carros passado pelas ruas, a meia dúzia apenas de edifícios no centro e a pracinha central com aquela estátua de mau gosto daquele arcanjo com a asa quebrada. Elizabete me disse que ela está assim há anos, desde a grande tempestade de 1976. Entra prefeito, sai prefeito, a população reclama e nada de disponibilizarem verbas pra consertarem aquilo. Outro dia desses fomos lá à noite, sentar num banco, comer um saquinho de pipoca (sim, aqui ainda tem pipoqueiros com aqueles carrinhos estacionados no meio da praça, na capital eu não vejo mais isso desde a minha adolescência) e ficar olhando as crianças brincando de pega. Elizabete quer muito ter filhos, já eu, tenho minhas dúvidas quanto a isso. Vale a pena colocar filhos no mundo com ele do jeito que está? Podem me chamar de pessimista, mas em minha opinião a tendência é só piorar. Conversamos, namoramos, falamos dos nossos planos, mas aquela maldita estátua incômoda daquele arcanjo aleijado me deixava com um nó na garganta cada vez que eu olhava pra ela, parada bem embaixo de um poste com a lâmpada queimada. Não tenho medo do escuro, mas é assustador como a escuridão deixa algumas coisas que parecem tão comuns no nosso dia a dia, com um aspecto mórbido. Cara, que calor! Amanhã sem falta vou ver se compro um ventilador pra gente nem que seja um desses de camelô. O nosso ficou na capital com meu sogro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário